Por Maria Inês Nassif
O STF tornou-se um bunker incrustado no coração da
democracia, que mais colabora para manter as deficiências do sistema político
do que para saná-las.
Escrevo com atraso a segunda coluna
sobre as dificuldades da oposição partidária brasileira (leia aqui aprimeira, O canto do cisne do PSDB e do DEM), mas isso pode ter
sido providencial. Coincide com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de
decretar a prisão dos condenados do chamado Mensalão sem o trânsito em julgado
de toda a ação.
As pessoas que concordam com a intromissão do STF em assuntos que a Constituição define como de competência do Legislativo dizem que os ministros do STF legislam porque o Congresso não cumpre a sua função. Se for possível sofismar sobre essa máxima, dá para concluir que o STF age como oposição porque os partidos políticos, que deveriam fazer isso, não conseguem atuar de forma eficiente e se constituírem em opção de poder pelo voto.
As pessoas que concordam com a intromissão do STF em assuntos que a Constituição define como de competência do Legislativo dizem que os ministros do STF legislam porque o Congresso não cumpre a sua função. Se for possível sofismar sobre essa máxima, dá para concluir que o STF age como oposição porque os partidos políticos, que deveriam fazer isso, não conseguem atuar de forma eficiente e se constituírem em opção de poder pelo voto.
O Supremo, na maioria das vezes em
dobradinha com o Ministério Público, tem atuado para consolidar um poder próprio,
que rivaliza com o Executivo e o Legislativo, isto é, atua em oposição a
poderes constituídos pelo voto. Tornou-se um bunker poderoso incrustado no
coração da democracia, que mais colabora para manter as deficiências do sistema
político do que para saná-las; e que mais se consolida como uma instância
máxima de ação política do que como uma instituição que deve garantir justiça.
Essas afirmações não são uma opinião,
mas uma constatação. O STF, nos últimos 11 anos, a pretexto de garantir direito
de minorias, legislou para manter o quadro partidário fragilizado nas ocasiões
em que o Legislativo – que não gosta muito de fazer isso – tentou mudá-lo. Como
magistrado, seleciona réus e culpados e muda critérios e regras de julgamento
para produzir condenações e dar a elas claro conteúdo político. O julgamento do
caso do chamado Mensalão do PT foi eivado de erros, condenou sem provas e
levará para cadeia vários inocentes. Casos de corrupção que envolvem partidos
de oposição caminham para a prescrição.
Como legislador, o STF derrubou as
tentativas do Congresso de fazer valer as cláusulas de barreira para
funcionamento dos partidos no Legislativo, votadas pela Constituinte de 1988 e
que foram adiadas ao longo do tempo. Elas serviriam para “enxugar” o quadro partidário
das legendas de aluguel.
Em 2008, o Supremo referendou decisão
do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), de que perderia o mandato o político que,
eleito por um partido, migrasse para outro depois da eleição. Embora
teoricamente defensável, a decisão de obrigar políticos eleitos à fidelidade
partidária apenas fechou a porta usada regularmente pelo políticos para
reacomodação do quadro partidário depois das eleições, ou de interesses
políticos nas vésperas de um novo pleito.
Num sistema político-partidário
imperfeito como o brasileiro, a possibilidade de trocar de legenda era
fundamental para o político. Dada a dificuldade dos políticos eleitos por
partidos tradicionais de sobreviver sem o apoio do governo federal, era comum
que, empossado um novo governo, houvesse uma migração de políticos
oposicionistas para partidos da base aliada. Isso manteve inalterado o número
de partidos por um bom par de anos, embora em número excessivo; e dava um certo
fôlego aos novos governos para compor maiorias parlamentares cuja ausência, num
sistema político como o brasileiro, poder inviabilizar um governo.
Na ausência dessa brecha, e sem que houvessem mudanças no sistema político que tornassem adequadas as punições para infidelidade partidária, a decisão do STF escancarou outra porta: abriu uma única exceção para a migração parlamentar, a criação de um novo partido. O PSD foi criado pelo grupo do ex-prefeito Gilberto Kassab em 2010, logo após as eleições, para dar uma alternativa aos integrantes do DEM que constataram que a desidratação eleitoral do ex-PFL naturalmente levaria o partido à extinção, mesmo com o nome novo; e que passar mais quatro anos na oposição, para a maioria dos políticos que lá estavam, também era uma sentença de morte. O PSD foi uma acomodação pós-eleitoral. A criação do Solidariedade e do PROS (e da Rede também, se o partido de Marina Silva tivesse obtido registro no TSE) serviram à acomodação pré-eleitoral no quadro partidário.
Se tudo continuar como está, os períodos de reacomodação das forças políticas sempre exigirão a criação de novas legendas.
O STF foi o artífice de um novo
processo de pulverização partidária que certamente tornará mais frágil o quadro
partidário e mais deficiente a ação legislativa. E tem inibido o Congresso de
legislar sobre partidos e eleições, quase que fixando os dois temas como
reserva de mercado do Judiciário. A decisão do ministro Gilmar Mendes, este
ano, de sustar a tramitação de um projeto no Legislativo que impedia ao
parlamentar que mudasse para outro partido levar junto o seu correspondente em
Fundo Partidário e horário eleitoral gratuito (que ficaria com o partido pelo
qual foi eleito), foi uma barbaridade jurídica que, se não tinha muito futuro
no plenário do SFT, surtiu o efeito de intimidar o Parlamento de seguir
adiante.
Diante desses fatos, é possível concluir, sem margem de erro, que não apenas os interesses dos integrantes do Congresso estão em desacordo com uma reforma política. Um risco igualmente grande de fracasso de uma mudança legal efetiva no sistema partidário e eleitoral reside no Poder Judiciário.
No caso do Mensalão, o STF não julgou.
Os réus já estavam condenados antes que o julgamento se iniciasse. O hoje
presidente do tribunal e relator da ação, Joaquim Barbosa, deu inestimável
ajuda para que isso acontecesse. A orquestra tocou rigorosamente sob sua
batuta, salvo o honroso desafino do revisor da ação, Ricardo Lewandowski. Seria
louvável se o julgamento servisse para mostrar à sociedade que até poderosos
podem ser condenados, se o processo não deixasse dúvidas de sua intenção de
fazer justiça. As condenações, todavia, foram fundamentadas em erros
visíveis a olho nu. É um contrassenso: para fazer a profilaxia política,
condena-se culpados, inocentes e quem estava passando por perto, mas tinha cara
de culpado.
Basta uma análise breve do julgamento
para constatar que, não se sabe com que intenção, Barbosa construiu uma
acusação sobre um castelo de cartas: como precisava existir dinheiro público
para que a acusação de desvio de dinheiro público vingasse, forjou o ex-diretor
de Marketing do BB, Henrique Pizzolato, como o “desviador” de uma enorme
quantia do Fundo Visanet, que não era público e que não foi desviado. Pizzolato
vai para a cadeia sem que em nenhum momento, como diretor de Marketing, tivesse
poder de destinar dinheiro do fundo. É uma situação tão absurda que as
campanhas contratadas pela agência DNA, que servia por licitação feita no
governo anterior ao Banco do Brasil, foram veiculadas pelos maiores órgãos de
comunicação, que continuam a falar do desvio embora o dinheiro tenha entrado no
caixa de cada um deles.
O STF considerou que a culpa de José
Dirceu dispensava provas e que a assinatura de José Genoíno, então presidente
do PT, num empréstimo feito pelo partido, que foi quitado ao longo desses anos
e considerado legal pelo TSE na prestação de contas do partido, tornava o
parlamentar culpado. Foram decisões politicamente convenientes e aplaudidas por
isso por parcela da população. Esse foi um erro cometido pela elite brasileira,
um grande erro – e torço para que ela perceba isso a tempo. Condenar sem provas
e sem evidências, quando o STF é a instituição que condena, pode se tornar uma
regra, não uma exceção. Qualquer brasileiro poderá estar sujeito a isso a
partir de agora. A visão subjetiva dos ministros do STF terá o poder de
prevalecer sobre qualquer fato objetivo.
Esses dois padrões de decisão do STF
só podem ser entendidos se tomados conjuntamente. São ações que dão sobrevida
aos partidos de oposição, ao manter o partido do governo sob constantes
holofotes, de preferência em vésperas de eleições; e ao mesmo tempo mantém os
partidos enfraquecidos por constantes intervenções em leis eleitorais e
partidárias, o que dá à mais alta Corte brasileira poder constante de
intervenção sobre assuntos político.
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