Há José Sarney e existe “José Sarney”. Há o
personagem e existe tudo o que está implícito quando se diz “Sarney”, como em
“Sarney apoiou Lula e apoia Dilma” ou “Sarney não gostou da última reforma
ministerial”. Em cena há quase seis décadas, “Sarney” é uma entidade além da
biografia. Virou coletivo. Imagina-se majestático. Mas é pejorativo.
Quando Sarney, aos 34 anos, ainda sem aspas,
assumiu o governo maranhense, sua posse foi documentada no filme Maranhão 66, de
Glauber Rocha e Fernando Duarte. Ele discursou em praça pública, diante de uma
multidão que, eufórica, recepcionara-o com um coro glorificador: Sarney!,
Sarney!, Sarney!, Sarney!
“O Maranhão não suportava mais
nem queria o contraste de suas terras férteis, de seus vales úmidos, de seus
babaçuais ondulantes, de suas fabulosas riquezas potenciais com a miséria, com
a angústia, com a fome, com o desespero'', enumerou o novo governador.
“O Maranhão não quer a
desonestidade no governo, a corrupção nas rapartições… O Maranhão não quer a
violência como instrumento de política, para banir direitos os mais sagrados… O
Maranhão não quer a miséria, a fome e o analfabetismo, as mais altas taxas de
mortalidade infantil.''
Corta para 2014, dia 23 de junho,
uma segunda-feira. Aos 84 anos, já adornado pelas aspas, “Sarney” foi com Dilma
Rousseff entregar chaves do Minha Casa, Minha Vida a beneficiários do Amapá,
Estado que o mantém no Senado há mais de duas décadas. O coro da multidão era
outro: Fora Sarney!, fora Sarney!, fora Sarney!, fora Sarney!.
Aquele Sarney que prometia, na alvorada de sua
carreira, inaugurar uma nova era a partir do Maranhão, chega ao ocaso de sua
existência na pele de outro “Sarney”. Oligarca de mostruário, símbolo do
arcaico, convive com o risco de ser derrotado em nova corrida para o Senado.
Ainda sob o impacto das vaias do
Amapá, que soaram em cinco momentos da solenidade de entrega de casas, Sarney
mandou dizer que não irá mais às urnas. “Entendo que é chegada a hora de parar
um pouco com esse ritmo de vida pública que consumiu quase 60 anos de minha
vida e afastou-me muito do convívio familiar”, ele declarou, por meio de nota.
A novidade escalou as manchetes
na forma de uma aposentadoria. Impossível. Sarney durou tanto que, depois de
ter virado “Sarney”, tornou-se, por assim dizer, um organismo
‘inaposentável’. Ainda que Sarney, o personagem, vista pijamas, “Sarney”, a
entidade, continuará surtindo seus efeitos sobre a vida nacional.
Aposentado, Sarney cuidará para
que “Sarney” não descuide de sua missão. Que é a de servir de inspiração para
todos os políticos que sonham com a transposição do atraso de suas almas
regionais para dentro das instituições federais. Iniciado com a chegada das
caravelas, esse plano de institucionalizar o atraso está em execução
permanente.
Nas últimas décadas, ao mesmo
tempo em que Sarney se empenhava para transformar o Brasil num Maranhão
hipertrofiado, “Sarney” foi ficando vago. É o apoiador dos generais da
ditadura, mas também é a mão estendida para Tancredo Neves. É o indesejável que
as bactérias tornaram inevitável ao atacar o organismo do eleito, mas é o
primeiro presidente desde Juscelino a cumprir integralmente o mandato, com as
instituições e a imprensa funcionando.
Inquilino impensável do Planalto, “Sarney” foi o
vice mais versa que a República já conheceu. Produzido pelo acaso, chegou ao
final do governo tão execrado que não teve como patrocinar um candidato à sua
própria sucessão. Seu aval cairia sobre qualquer candidatura como uma sentença
de morte.
O processo de reabilitação de
“Sarney” em vida foi deflagrado pelo sucessor, Fernando Collor, que conseguiu a
façanha de realizar um governo ainda pior. Mais tarde, Lula forneceria uma
biografia nova a “Sarney”. Fez isso ao procurá-lo para pedir apoio, em 2002,
depois de tê-lo xingado de “ladrão” durante anos.
Quatro vezes presidente do
Senado, “Sarney” protagonizou o escândalo dos atos secretos. Secretamente, deu
emprego a uma sobrinha de sua mulher que morava em Campo Grande, forneceu
contracheque a uma sobrinha do genro que residia em Barcelona, alçou à folha do
Estado um personagem (“Secreta”) que trabalhava como mordomo na casa da filha
Roseana Sarney…
Convidado pelos jornalistas a
analisar o comportamento do aliado, Lula tratou-o com distinção: “Sarney não
pode ser tratado como se fosse uma pessoa comum.'' De fato, se há algo de que
“Sarney'' não pode ser acusado é de ser comum. Difícil saber agora o que os
livros dirão de “Sarney'' quando puderem falar dele sem os ruídos da
conjuntura. Vai à posteridade o “Sarney” incomum ou o Sarney ordinário?
Quando olha para o espelho,
“Sarney” enxerga o brasileiro mais extraordinário que Sarney já conheceu. Nos
modos, um sujeito cordial. Nas artes, a imortalidade da Academia Brasileira de
Letras. Na política, a presidência de um “estadista” que soube completar a
transição sem descuidar da “liturgia do cargo”.
Quando olhar para o Maranhão e
verificar o sucesso que “Sarney” obteve sendo Sarney a vida inteira —do império
estadual de comunicação até as edificações batizadas com os nomes de toda a
família— a posteridade haverá de reconhecer: “Sarney” é a personificação de um
Brasil em que a vida dos governantes sempre melhora. Mesmo quando piora a vida
dos governados.
Ao perder uma eleição para
governador da Califórnia, nos Estados Unidos, Richard Nixon convocou a imprensa
para informar que deixaria a vida pública. “Vocês não terão mais Richard Nixon
para chutar”, disse. O morubixaba do PMDB também se julga injustiçado pela
imprensa. Mas não pode ecoar Nixon. Ainda que Sarney se aposente, sempre haverá
um “Sarney” para ser chutado. Com muita justiça.
Fonte: Josias de Souza
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